Química de Coordenação e suas aplicações

Já ouviu falar de compostos de coordenação? Complexos metálicos? Embora pouco conhecidos pela população em geral, eles possuem uma gama de aplicações que os tornam amplamente pesquisados na química. Desde atividades contra Trypanosoma cruzi (protozoário causador da Doença de Chagas)[1] até atividades anticancerígenas[2], os compostos de coordenação nos mostram que são de extrema valia para o desenvolvimento científico.

A química de coordenação é uma categoria da área da química inorgânica e traz consigo uma gama de curiosidades, e um campo de pesquisa muito vasto. Você já se viu diante de algo que não conseguiu explicar? Uma situação complexa? O cientista que isolou o primeiro  composto de coordenação se viu numa situação muito semelhante! Tanto que chamou essa classe de compostos de COMPLEXOS!

Desde a “revolução científica” causada pelos complexos, até a atual química de coordenação, essa área continua sendo um território “complexo”, mas com profissionais capacitados e anos de pesquisa, essa área vem mostrando resultados excelentes. Um exemplo disso é o laboratório de química de coordenação da Universidade Estadual de Maringá, onde muitos alunos que hoje atuam na área, junto ao Prof. Dr. Vagner Roberto de Souza, vêm obtendo ótimos resultados na pesquisa acadêmica.
Vamos conhecer um pouco mais sobre a Química de Coordenação?

UMA REVOLUÇÃO COMPLEXA

A ciência, segundo Thomas Kuhn, passa por crises em que os paradigmas que até então sustentavam a “ciência normal” são abandonados por um novo corpo teórico que explique as anomalias que se acumularam sobre o paradigma até então utilizado. Essa crise leva a uma “revolução científica” onde os cientistas são forçados a adotar um novo paradigma[3]. Um dos casos em que isso é evidente ocorreu com o desenvolvimento do que conhecemos hoje por Química de Coordenação. 

No final do século XIX e início do século XX, alguns compostos de metais de transição, no caso ferro e cobalto, que haviam sido sintetizados primeiramente no século XVIII começaram a ser isolados e estudados por cientistas, como Gibbs e Jorgensen. A teoria vigente para as estruturas químicas era baseada no conceito de valência de Kekulé, onde um elemento faria somente um número determinado de ligações e esse número seria imutável para cada elemento[4]

Jorgensen propôs estruturas baseadas na valência para o cloreto de hexaamincobalto(III) [Co(NH3)6]Cl3, enquanto Werner propôs estruturas para o mesmo composto, mas utilizando uma geometria octaédrica e em um modelo onde a trivalência do cobalto não era obedecida. 

Figura 1: KAUFFMAN, George B. Sophus Mads Jorgensen (1837-1914): A chapter in coordination chemistry history. 1959.

A diferença entre as estruturas propostas pelos dois cientistas para esse composto bem como para outros compostos de cobalto, porém com um número menor de aminas, gerou uma disputa. De um lado Jorgensen, conservador e mais experiente, e do outro, Werner, jovem e de um ímpeto de produção magnífico. Jorgensen utilizava a base teórica de Kekulé e de Blomstrand para montar suas estruturas, enquanto Werner propunha uma base nova para explicar a classe de compostos a ser estudada[5].

A UEM NA QUÍMICA DE COORDENAÇÃO

O laboratório de química de coordenação da UEM é chefiado pelo Prof. Dr. Vagner Roberto de Souza, no texto a seguir ele respondeu a algumas perguntas, falando um pouco sobre sua história na área, o que o levou a escolher a Química de coordenação e outras curiosidades. Confira!

O que te levou a escolher esta área?

“A escolha pela área de Química Inorgânica acredito que aconteceu durante a graduação, após ter as disciplinas da área com os professores Luiz Antônio Andrade de Oliveira, Maria Pedrina Dalponte Mattioli, Marian Rosaly Davolos, Elizabeth Stucchi e Antônio Eduardo Mauro. Hoje, pensando sobre o momento que me levou a decidir pela área de inorgânica, especificamente, química de coordenação, foi na reunião anual da SBQ, em 1996, em Poços de Caldas, após a palestra do professor Henry Taube (Nobel de Química de 1983) sobre cinética e mecanismos de reações inorgânicas e as implicações nos processos de transferência eletrônica em solução. Naquele ano, conheci o professor Henrique Toma e, em 1998, fui trabalhar em seu laboratório. Foi sob a orientação do professor Toma e nas inúmeras conversas de laboratório com os muitos colegas que ficavam horas e horas na frente de colunas cromatográficas esperando os compostos serem eluídos, que o interesse pelas propriedades eletrônicas, catalíticas, fotoquímicas e redox dos complexos ficou mais contundente.”

Algum professor influenciou a sua escolha?

“Como disse na questão anterior, foram vários professores. Além dos professores das disciplinas de química inorgânica no IQ de Araraquara, também tive a possibilidade de participar, ainda como aluno de graduação, de vários seminários de grupo com os professores Elias Tfouni (USP-Ribeirão Preto), Alzir Batista (UFSCar) e Douglas Franco (USP-São Carlos). Dentre esses professores, quero destacar dois, a professora Maria Pedrina e o professor Henrique Toma. As conversas com a professora Maria Pedrina, durante as longas sínteses do composto [Ru(EDTA)H2O], foram importantes para a escolha da química inorgânica, pois foi no laboratório que aprendi o ofício do químico inorgânico. E o professor Toma mostrou, no dia a dia do laboratório, como devemos romper com as divisões clássicas da química inorgânica.”

Um dos alunos que já passaram pelo laboratório de química de coordenação da UEM e hoje atuam na área é o Dr. Kalil Cristhian Figueiredo Toledo que hoje faz pós-doutorado na Universidade de São Paulo e a seguir ele  respondeu algumas perguntas sobre a sua trajetória na  química de coordenação. Confira!

Qual o objetivo da sua pesquisa?

“Meu trabalho é focado no desenvolvimento de catalisadores para aprimorar e desenvolver sistemas capazes de realizarem a conversão de energia solar em energia elétrica ou em energia química utilizando células fotoeletroquímicas e sistemas fotossintéticos artificiais.

No caso da fotossíntese artificial, o objetivo aqui é projetar e fabricar catalisadores acionados por luz que possam oxidar (dividir) a água, que por sua vez gerará elétrons que em uma etapa posterior produzirá o “combustível”. O combustível pode ser tanto o hidrogênio (H2), que é o alvo na maioria das tentativas, uma vez que os elétrons precisam apenas reagir com prótons, um processo razoavelmente simples, mas também pode ser um combustível à base de carbono, por exemplo um álcool, que pode ser mais fácil de usar hoje em dia, mas provavelmente é mais difícil de fabricar, já que os catalisadores que reduzem o CO2 por foto (luz) são escassos e difíceis de desenvolver.

Durante três décadas de pesquisa, diversas estratégias foram exploradas para a construção de catalisadores de oxidação da água, que vão desde complexos moleculares a diferentes sistemas miméticos envolvendo a ligação metal-oxo. A pesquisa sobre complexos moleculares homogêneos tem sido essencial para a compreensão atual dos princípios mecanísticos por trás da catálise de oxidação de H2O, tanto para sistemas naturais como artificiais. Dentre os catalisadores moleculares para a oxidação da água, aqueles baseados em rutênio mostraram a maior potencialidade, exibindo altas eficiências catalíticas.”

De que forma sua pesquisa pode contribuir para a sociedade?

“O desenvolvimento da sociedade humana tende a demandar um consumo crescente de energia, impondo uma pressão cada vez maior e insustentável sobre os recursos naturais e o meio ambiente, principalmente pela queima de combustíveis fósseis e outras fontes de energia não renováveis e altamente poluentes. Em 2007, o consumo médio de energia foi de 13×1012 watts, e estima-se que em 2050 esse valor aumentará para 50×1012 watts, mas a maioria das fontes de energia são insuficientes para acompanhar essa crescente demanda a nível global. Portanto, fontes alternativas eficientes e limpas de energia precisam ser urgentemente criadas para suprir uma parcela cada vez maior dessa demanda de energia para possibilitar o desenvolvimento de uma economia e estado de bem-estar social sustentável. Por exemplo, a energia nuclear é potencialmente perigosa e requer uma grande quantidade de instalações difíceis de serem construídas com a rapidez necessária, e suprir a demanda energética; e a concentração atmosférica de CO2 provavelmente triplicará caso apenas os recursos de energia fóssil sejam utilizados para aquela finalidade. E mesmo a possibilidades do uso da biomassa começam a ser questionadas e passando a ser considerada uma fonte de energia limitada. Portanto, é de extrema importância que a comunidade global se concentre no desenvolvimento de fontes alternativas de energia isentas de carbono, e que tenham um menor impacto sobre o meio ambiente. 

Considerando-se as alternativas disponíveis, a única fonte de energia real, abundante e inesgotável disponível em nosso planeta é a energia solar. De fato, a quantidade de energia que alcança o nosso planeta a cada hora é maior que a energia atualmente consumida por nossa sociedade durante um ano inteiro. No entanto, o uso direto da energia solar tem vários inconvenientes pois precisa ser concentrada e não pode ser armazenada, sendo geralmente convertida em energia elétrica ou química. De fato, dependemos de um abastecimento de energia contínua e, portanto, de estratégias de armazenamento simples, de baixo custo e fácil uso para que essas alternativas se tornem viáveis. A energia elétrica ainda não pode ser armazenada nas enormes quantidades necessárias mesmo para sustentar a demanda por períodos relativamente curtos, por exemplo de algumas horas; e as tecnologias de armazenamento na forma de hidrogênio e catalisadores para tornar os processos de conversão em outras substâncias de alto teor energético (combustíveis) eficientes, ainda precisam ser desenvolvidas. Consequentemente, existem grandes desafios a serem superados para a implementação de uma sociedade mais sustentável baseada no uso da energia solar em larga escala. Nesta perspectiva, a produção sustentável de energia limpa e de fácil armazenamento, que pode abranger as necessidades das gerações futuras, constitui um dos maiores desafios científicos e tecnológicos do século XXI.”

Dentre as áreas da Química inorgânica, a química de coordenação é considerada uma das mais complicadas, o que te levou a escolher essa área?

“Quando entrei na universidade o primeiro professor com quem tive contato foi o professor Vagner Roberto de Souza na matéria de química geral. O professor Vagner sempre utilizava conceitos da química inorgânica para exemplificar suas aulas, logo de cara me identifiquei com tudo isso, e comecei a me interessar cada vez mais por essa área. Depois de muito insistir comecei a desenvolver um projeto orientado pelo professor Vagner em seu laboratório, com o tempo fui me aprofundando cada vez mais na química de coordenação, a cada reação que fazia, cada observação de mudanças de coloração, a variedade de compostos capazes de serem obtidos, as aplicações que podem ser exploradas, a cada artigo que lia, mais interesse era despertado. Mas acho que o que mais me chama a atenção na química de coordenação é que posso usar todos os conceitos que aprendi das outras áreas da química. Por exemplo, a química de coordenação é muito dependente do que está sendo ligado ao metal central, por isso o conhecimento em química orgânica é uma ferramenta indispensável no desenvolvimento dos complexos. A química analítica também é extremamente importante, seja determinando o épsilon (coeficiente de absortividade molar, a quantidade que um mol de substância tem em absorver e, por consequência, diminuir a intensidade da luz incidida) de complexos, seja titulando eles ou criando uma curva de calibração. Já no que diz respeito à físico-química, vemos os conceitos de eletroquímica e de cinética que são indispensáveis para a química de coordenação. Citei apenas alguns exemplos, dentro da química, mas isso pode se estender para outras matérias também, a união da química de coordenação com a farmácia que possibilitou o desenvolvimento de novos fármacos, como a cisplatina, a união da química de coordenação com a engenharia possibilitando o desenvolvimento de processos industriais mais favoráveis utilizando catalisadores de complexos metálicos, como o complexo de irídio utilizado no processo Cativa, uma rota para produção de ácido acético. A união da química de coordenação com a biologia/medicina que ajudou na compreensão do mecanismo de transporte de oxigênio em nosso organismo. Esses são apenas alguns exemplos da importância da química de coordenação em outras áreas mostrando o quão importante é essa pequena parte da química e o porquê da minha escolha.”

Algum professor influenciou a sua escolha?

“Como disse anteriormente o professor Vagner teve um papel fundamental na minha escolha, ele me ensinou os conceitos que uso até hoje e acredito que muito da forma que vejo a química hoje vem dos ensinamentos que ele me passou durante os seis anos em seu laboratório. Foi o professor Vagner que me apresentou o professor Juliano A. Bonacin com quem realizei meu doutorado e que também me ensinou muito, principalmente a importância de se aplicar o que está sendo desenvolvido nas universidades para o bem da sociedade. Hoje trabalho no laboratório do professor Koiti Araki, uma referência na área de química de porfirinas e química supramolecular, mas além da pesquisa em si, o pensamento que o professor Koiti mostra principalmente na importância de parcerias entre indústria e o meio acadêmico o que faz com que a pesquisa se torne muito mais impactante para a sociedade é um dos fatores que me fizeram escolher ele como supervisor do meu pós doutorado. No mesmo laboratório também está o professor Henrique E. Toma, um dos maiores pesquisadores da química de coordenação, que foi orientador dos meus orientadores. Todos eles são inspirações próximas que possuo e tive a honra de conviver com eles a aprender com todos.”

Pode dar um exemplo de um trabalho seu? 

“Dois artigos foram muito marcantes para mim. O primeiro intitulado “Non-innocent behavior of 1-(2′-pyridylazo)-2-naphtholate coordinated to polypyridine ruthenium(II) complexes” publicado em agosto de 2014 no Journal of Coordination Chemistry Volume 67 que foi meu trabalho de mestrado[6]. Foi um dos primeiros artigos que escrevi e que mostrou todo o processo de publicação. Como é que se deve responder os revisores da revista, a forma de se submeter o artigo, a importância de formatação dele, esses eram coisas que eu não fazia ideia e a experiência foi muito produtiva. Além disso ver o fruto do trabalho ser publicado em uma revista é muito significativo, além de ser um trabalho puramente de química de coordenação, onde mostro a influência da esfera de coordenação nas propriedades do centro metálico, como o ligante interage com o metal.

O segundo trabalho foi o mais recente “X‑ray Photoelectron Fingerprints of High-Valence Ruthenium−Oxo Complexes along the Oxidation Reaction Pathway in an Aqueous Environment” publicado na The Journal of Physical Chemistry Letters, onde diversas parcerias foram realizadas[7]. Foi um trabalho em conjunto envolvendo diversos pesquisadores de centros de pesquisa de renome como o departamento de física e astronomia da universidade de Uppsala na Suécia, o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, (LNLS) mais especificamente o centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEN), Instituto de Física da UNICAMP, Instituto de Física da USP e o próprio Instituto de Química da USP. Esse trabalho foi muito importante principalmente por essas parcerias, conhecer pesquisadores de renome internacional e por realizar um trabalho de ponta.”

Acima temos o exemplo de dois profissionais da área de Química de Coordenação, e através das suas entrevistas fica visível a importância dessa área no desenvolvimento científico bem como sua vasta aplicação e interdisciplinaridade, com um pouco de curiosidade se descobre muita informação sobre essa área, mas algumas delas exigem um conhecimento técnico elevado para total lucidez. Sinta-se desafiado!

Referências Bibliográficas

[1]BASTOS, Tanira Matutino. Avaliação da atividade anti-Trypanosoma cruzi de nitrosilo/nitro complexos de rutênio em modelos experimentais in vitro e in vivo. 2013. 66 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Biotecnologia)- Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2013.

[2]GOLFETO, Camilla Calemi. Nitrosilo complexos de rutênio : síntese, caracterização e avaliação de suas potencialidades citotóxicas. 2008. 122 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Exatas e da Terra) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2008.

[3] MASSONI, Neusa Teresinha. Epistemologias do século XX. Porto Alegre: UFRGS, 2005.

[4] TOMA, Henrique Eisi. Química de coordenação, organometálica e catálise. Editora Blucher, 2016.

[5] KAUFFMAN, George B. Sophus Mads Jorgensen (1837-1914): A chapter in coordination chemistry history. 1959

[6] TOLEDO, Kalil CF et al. Non-innocent behavior of 1-(2′-pyridylazo)-2-naphtholate coordinated to polypyridine ruthenium (II) complexes. Journal of Coordination Chemistry, v. 67, n. 20, p. 3311-3323, 2014.

[7] SILVA, Jose Luis et al. X-ray Photoelectron Fingerprints of High-Valence Ruthenium–Oxo Complexes along the Oxidation Reaction Pathway in an Aqueous Environment. The journal of physical chemistry letters, v. 10, n. 24, p. 7636-7643, 2019.

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